domingo, 16 de dezembro de 2007

Eu e o passarinho


Final de século, de ano e de milênio.
Final do mês de dezembro.
A antena de TV que brota de um barraco
mostra o sentido extato de onde virá a vida.
Ali pousava e partia um bem-te-vi
levando no bico um raminho de capim...
Eu sei onde ele está fazendo o ninho,
mas não posso contar. É um segredo
entre eu e o passarinho.

Tribo Guarani


Na oca de palha, ao clarear o dia,
um índio inicia o deu despertar.
Um cacique ancião, pajé mais antigo,
faz passos preciso e gestos com as mãos.
A brisa da aurora lhe encrespa o cocar
e ele a sussurrar uma antiga canção.
A única herança que ele herdou da tribo
é o rumor das águas a duetar contigo
o fim do seu povo e sua nação.

Terra decadente chamada de aldeia,
onde o índio anseia por preservação,
interesse escuso do homem amarelo
é o gancho e o elo da escravidão.
A cultura branca domina e avança
matando crianças por desnutrição.
O capitalismo, no auge da sanha,
com seus instrumentos faz a luta e ganha.
Tudo isso é chamado civilização.

O índio de outrora, parte do ambiente,
tornou-se consciente, civil e cristão.
Percebe a desgraça no próprio remédio.
Desenvolve o tédio e a depressão.
O credo e a cruz não respeitam culturas.
O lucro, a usura e a exploração...
A consciência civilizatória,
ao impor ao índio um conceito de história,
age como um bárbaro dos tempos pagão.

Proletários

O sol cúprico cobre as almas
de aparência esquelética.
Como súplica os operários
desejam salário e ética.

Num sonho lúdico de justiça,
de justeza não patética,
ao Estado perdulário
pede-se mais salário e ética.

Desde os tempos mais remotos,
em obras históricas e épicas,
tem seu labor diário
sempre sem salário e ética.

Morrem-se de escravidão
ou alimentação milimétrica.
Ecoam os campanários
cobrando salário e ética.

Último cerradeiro

Sentindo os últimos dias,
aquele velho pressentia
seus momentos derradeiro.
Demonstrando alegria
usa um resto de energia,
levanta e sai no terreiro.
Encostado no portal
pede a um neto pra escutar
este seu ultimo pedido.
Não sei se resisto a tanto,
quero despedir dos campos.
Me leve enquanto estou vivo.
Talvez, numa cena rara,
eu vejo um bando de araras
voando em busca de abrigo.
Quero cruzar o espigão,
tomar chuva, ouvir trovão,
Me sentir surpreendido.
E lá pelas cabeceiras,
numa estrada boiadeira
encontrar tropa e peão.
Ver nas mãos de um berranteiro
um berrante em desespero
chamando minha atenção.

Passar pelo caminho fundo
onde a estrada de meu mundo
se afunila sobre mim.
Ver meu cavalo, o Valente,
solto no pasto contente
entre as moitas de capim.
Neste meu último afinco
talvez ouço seu relincho
se despedindo de mim.
E lá no alto do campo,
com os olhos banhado em pranto
em sinal de gratidão,
quem sabe ainda posso ver
uma copada de ipê
soltando flores no chão.
Quero ouvir potro e garrote
cruzar a ponte a galope,
e os gritos dos tropeiros.
Em meu ultimo arroubo,
quando o sol por trás do morro
despedir desse campeiro,
vou pisar descalço na areia,
sentir o pulsar das veias
desse velho cerradeiro.

Considerações filosóficas de um caipira

Tio Joaquim, já de cabeça branca, provavelmente com mais de cinquenta, vende seu sítio a um oportunista qualquer, abandona o rio Bauru e muda para a cidade trazendo consigo apenas a sabedoria cabocla. Passava horas a observar o movimento daquela florescente cidade de porte médio, que para ele tinha agitação de uma grande metrópole.

Certo dia saiu-se com esta: “Uma cidade grande como Bauru é como um tacho de melado, verve dia e noite. Enquanto o centro do tacho vai vervendo vai jogando a escuma pras beradas”.

Mesmo sem nunca ter ouvido falar em funcionário fantasma e inchaço da máquina pública, sempre que ia a uma repartição voltava espantado com o número de funcionários e afirmava que era impossível exercer qualquer controle sobre tantos empregados. Garantia que dia de pagamento até ele poderia entrar na fila que o patrão pagava.

Núcleos residenciais

As casas eram iguais,
os bairros eram iguais como a city dos mineiros.
As crianças eram iguais e brincavam nas ruas
porque as mães eram iguais.
Os homens trabalhavam longe de casa
uns iguais aos outros.
Só os sonhos eram diferentes.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Soneto ao tamanduá


No albor do dia já sem chuva vem a aragem.
Os pássaros a gorjear provocam eco.
O orvalho agasalhado nas ramagens
se desprende. Com o vento todo o mato está inquieto.

Nas veredas das chapadas vê-se o viço
nos verdes ramos arqueados pela chuva.
As operárias em profusão e reboliço:
vai apressado um carreiro de saúvas.

Sob moitas e touceiras, displicente,
de calda embandeirada em alvoroço
com o focinho ao rés do chão e mui contente,

serve-se o tamanduá de lauto almoço.
Depois caminha em campo aberto lentamente
com seu filhote atarracado sobre o dorso.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O caipira da tábula redonda

Meu reino por um cavalo!
Mas que seja marchador.
de cor vermelha encerada,
estrela e os pés calçados.
Um bom laço enrudiado
que o Zé Seleiro trançou.

O arreio, seu fulano,
pode ser basto ou cutiano,
mas tem que ser bem forrado.
Com chinchador e barrigueira,
uma baldrana bem faceira
e um pelego colorado.

Quero um buçal bem trançado
pra deixar o pingo amarrado
enquanto danço uma rancheira.
Rédeas de talas de couro,
o peitoral cor de ouro
e uma bota boiadeira.

Quero uma casa sem entojo,
onde o rio faz um rebojo,
sob uma moita de mato.
No terreiro umas galinhas.
Na janela da cozinha,
encolhidinho, meu gato.

Quero um lugar pra sentar,
quero um lugar pra cuspir,
onde eu possa cachimbar
vendo a fumaça subir.
Me abanco no baldrame
da soleira da cozinha.
No horizonte se avizinha
um cúprico luar...

O café que ela me faz

Tomarei sim do café seu enegrecido caldo
que espero complacente e devotado
o infuso que extrai, do grácil pó,
seu amargor pleno e encorpado.

Equilibradamente adoçado por cristais
vaza, no coador, o atro líquido.
Como um monge concentrado em rituais
a degustá-lo por não ser insípido.

Fumegante e quente como brasa,
flui pelo coador como o tempo na ampulheta.
Exala-se, da cozinha para toda a casa,
o agradável cheiro da bebida preta.

Enfim, posso sorver a impregnar-me
de tão lauto sabor em doses poucas.
Nada supera o sabor do seu café
a não ser os beijos que me dá na boca.

Sem meu eu


Essas manhãs frias de junho, de céu cheio de serração, que mal posso ver os prédios a um quarteirão de distância, fazem-me lembrar dos carreadores de cana, ainda de madrugada, quando um caminhão de bóia-fria chegava em Lençóis Paulista, misturando-se com os poucos moradores da fazenda que ainda resistiam ao êxodo rural. Enquanto o pessoal se organizava ao longo do carreador, pendurando suas matulas de almoço em alguma árvore, deixando na sombra o corote de água ou a moringa – pois ainda não havia garrafas térmicas –; enquanto amolavam os facões, aparecia um puxa-saco que saía à frente contando as ruas de cana, de três em três e colocando à disposição do infeliz explorado.

Essas insólitas lembranças em minha mente misturam-se com o eco do telejornal da noite anterior falando de mais um massacre contra os Sem Terras.


Pessoas sem esperanças,
sem passado, sem lembranças,
sem histórias pra contar.
Só tristeza e desencanto.
Os massacres já são tantos,
sou um sem pranto pra chorar.
Sem Deus para proteger,
sem justiça pra julgar,
o Estado dá o parecer
e terras pra enterrar.
Sofre meu corpo sem alma
que há tempo desvaneceu.
Sofro junto aos sem nada,
sou um corpo sem meu eu.

Lobo mal

"Vamos brincar na floresta onde vive o lobo mal",
era meu pai me chamando para um passeio matinal.
Lá ia o velho e a criança, os dois cheios de esperança
passear no matagal.

Recostado em um tronco sob o arbusto frondoso,
meu pai me contava a historia de um lobo perigoso
que habita nossas florestas, nos assusta e nos inquieta
por ser voraz e maldoso.

Nos lugares mais difíceis, nas trilhas cheias de espinhos,
meu pai me estendia a mão e me ensinava o caminho.
Nas horas de desespero meu pai foi meu companheiro.
Nunca me senti sozinho.

Passou-se o tempo, eu cresci, luto em busca do melhor.
Cada dia é um lobo bebendo do meu suor.
Minha vida vai passando, eu ouço um lobo uivando
E alcatéias ao meu redor.

Hoje eu recordo meu pai, sua vida foi um exemplo.
As histórias que contava moldou o meu comportamento.
Já não conto mais contigo, minha vida corre perigo:
O grande lobo é o tempo.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Ainda que tardia

Vou abrir as portas pro sol matutino
e pôr um sorriso na face que chora.
Usar seu calor pra fundir meu destino.
Despedir sorrindo de quem vai embora.

Ver cada momento como um amanhecer,
recriar conceitos e ousar na coragem.
Como a primavera, tudo a florescer.
Ter um novo olhar sobre a mesma paisagem.

Cada novo dia será nova imagem:
Uma foto inserida em meu pensamento,
tal qual a partida de longa viagem
a perenizar esse feliz momento.

Não perguntarei de onde vem os ventos
nem onde deixou o pólen das flores,
regarei os campos e terei a seu tempo
uma nova florada e novos odores.

Ao ouvir os galos e ver raios da aurora
não tente barrar a luz da madrugada,
una-se aos rebeldes que é chegada a hora
De ir vida afora em luta cerrada.

Junta-se aos valentes e seja mais um
que busca justiça pela rebeldia.
Aos injustiçados o inimigo é comum
e a revolução já se faz tardia.

Lactomorfose

No refluxo da noite, já quase dia,
no empoeirado curral de minha infância
meu pai campeava o gado.
Terneiros presos mugiam
na mangueira rodeada de crianças.

Galgando-se ripões, que por entremeios
o sol dourava em minhas mãos uma caneca
a espuma que pendia em sua borda era enleio
que alimentava minha alma já sapeca.

E a vida veio pra vila. Eu, um galalau atrevido,
à mesa tomava leite numa garrafa de vidro.
Neste caminhar halófilo vejo tudo colmatado,
como num úbere de plástico eu tomo leite ensacado.

Em remolho vem as lembranças,
de forma leni me abraça.
Já no pojo da esperança
tomo leite posto em caixa.
Enfim, tudo se relança,
velho só eu e a vaca.

O gosto amargo do açucar


Nas campinas de Lençóis, onde as jaguatiricas
disputam espaço com os lobos, é lá que o caipira fica.
Numa cabeceira d’água ele afoga suas mágoas
comendo queijo e canjica.

Se eu saio bater lagoas beirando rios e vazantes
só pego peixe pro gasto, apesar de ter bastante.
Eu vejo a mais de cem braças a seriema que passa
com seu andar elegante.

Naquele capão de mato, que cobre o rio caudaloso,
eu ouço o ronco dos bugios no entardecer preguiçoso.
O trio puído das pacas me faz lembrar que a caça
é um ato criminoso.

Às vezes saio a cavalo percorrendo os descampados,
surpreendo os veadinhos lambendo o cocho do gado.
Ao me vêem sobre o arreio, os bichinhos com receio,
fogem pro mato fechado.

Mas como todo matuto eu também sonho acordado
e deste sono que durmo eu me desperto assustado:
Eu vejo um monstro que avança, faz de mim uma criança
com o futuro ameaçado.

Um deserto verde que cresce se expande pra todo lado.
A cada safra que passa, mais um inferno é plantado.
Leva tudo ao arrepio, destrói nascentes de rios,
campos, matas e cerrados.

Pensando só em dinheiro, essa grande prostituta
segue invertendo valores, vencendo todas as lutas.
Essa é mais uma denúncia que faço em minhas andanças,
sentindo em minha garganta o gosto amargo do açúcar.

A primeira vez de um caipira

A minha primeira vez foi cheia de imprevisto e lances engraçados marcando de forma indelével a vida desse caipira. Até hoje sinto um misto de vergonha e frio quando recordo a cena que se deu na casa do meu patrão: eu saindo do quarto da empregada com a calça desabotoada e meio sem jeito dou de cara com ele no corredor.

Ele morava na cidade e sempre nos finais de mês íamos a sua casa receber o salário e já fazer compras para passar os próximos trinta dias. Eu contava na ocasião com 18 anos e ainda não havia passado por essa inusitada experiência, pois era um matuto que pouco saia das redondezas da minha roça e por ali onde eu vivia cuidando dos animais e das plantações era praticamente impossível viver tal experiência. Mas ela aconteceu. Não fosse esse imprevisto da calça arreada diante do patrão tudo teria sido maravilhoso.

Ocorreu que na sala do escritório em meio aos demais funcionários passei a sentir algo estranho e quase incontrolável. Por ser muito tímido e não estar acostumado com o ambiente da cidade senti dificuldades para controlar e resolver tal situação. Ao ver a empregada, que nos servia um cafezinho, a chamei do lado e falei da minha situação. Mui gentilmente recolheu as xícaras e me chamou para a cozinha. Eu, muito envergonhado, acompanhei seus rebolados pelo corredor que levava até seu quarto nos fundos da casa. Abriu a porta e apontando para uma portinha mais estreita disse-me meigamente: _ fique à vontade, é todo seu.

Bastante sem jeito e apavorado pela premente necessidade demorei muito para decidir, pois olhava para o bidê e achava uma coisa meio estranha, olhava para o vaso sanitário e me parecia uma coisa desarranjada. Não dava para agachar em cima daquele negócio meio alto. Sabia vagamente que o pessoal da cidade tinha um jeitão esquisito de cagar sentado. Experimentei baixar a calça e sentar naquele coisão branco de louça. Quando encostei a bunda estava tão frio que me pus de pé imediatamente e a vontade foi apertando. Imaginei em resolver do meu jeito e disse pra mim mesmo: “vou agachar em cima dessa panela de porcelana com a calça na altura do joelho”. Não podia erguer uma das pernas para subir, fiquei em volta daquilo como um frango tentando andar na peia ameaçando subir e não podia abrir as pernas. A vontade foi apertando, eu já suava frio e lembrava das moitas de bananeira e das restingas nas beiras dos rios. Tudo isso piorava a situação.

Segurei no registro de água embutido na parede e fui dando um jeito tentando subir com a calça na curva, pois imaginava impossível ficar em pé em cima daquilo para depois descer a calça e agachar. Com muita dificuldade consegui dar com os dois pés sobre o vaso sanitário, agachei rapidamente e, como a situação exigia, o produto desceu de forma veemente. Ao chocar com a água, espirrou em minha bunda já molhada de suor. Ao sentir os respingos gelados nas nádegas, instintivamente me pus de pé de forma atabalhoada, escorregando do vaso. Corri a mão na parede buscando o tão amigo registro de água, mas foi em vão. A um metro do vaso choquei-me com o lavatório onde uma saboneteira de metal foi arremessada de encontro à lixeira. Por fim, fui barrado pela porta onde dei de cabeça derrubando um secador de cabelos que estava ali pendurado.

Com tamanho estardalhaço, em um segundo todos da casa correram para averiguar quando eu apavorado abri a porta e antes de erguer a calça dei de cara com meu patrão.

.

Progresso

Voltei à inesquecível terra
andando a pisotear banhados
e sentindo cheiro de brejo,
como se fosse a melhor coisa do mundo.
Naquele instante me senti de novo um matuto
e como um velho cerradeiro,
acostumado a tudo por aquelas bandas,
espiei cada curva do caminho
já em traçado novo e alargado.
Procurei alguma coisa que me ligasse ao passado,
mas não encontrei.
Ali tudo me cheirava a progresso.
Eu ouvi o eco ensurdecedor da destruição.
Pude ver ali o presente incontido e estúpido
pedindo passagem para o futuro.
Que futuro?

Soneto ao cerrado

Nas palnícies longilíneas do cerrado
a louçania natural de suas plantas
serve de ornamento ao que é sagrado
cujo legado recebemos por herança.

Num sopro acariciante, a deusa flora
faz balançar cada capão de ipê florido.
Recaem as flores sobre a areia branca,
campa para os indíos ali jazidos.

Os outeiros que se erguem no cerrado
são panteões que deus Tupã fez erigir.
Cada rio é um povo dizimado.

No subsolo o aquífero preservado
são as lágrimas da tribo Guaraní
Pelos quais eu também tenho chorado.

Soneto aos candangos


Quando a tocha universal luzir os lagos,
prateando cada arco de Brasília
nos moquiços em desjejum de gosto amargo,
a fronte escura do candango sua e brilha.

Na miséria que gravita a grande nave
contempla a maravilha que fizeste.
Em cada canto do Brasil tão miserável
há um candango que sustenta essas benesses.

Ao povo que mantém tal luxo e glória
recebeste como herança da historia
um ambiente miserável e violento.

Entre mansões e palácios opulentos,
em homenagem, há um monstrengo de cimento
que se refere à tão digna memória.

Flor do cerrado

Flor mulher em desabrolho ao ar campestre
naturalmente bela em pleno prado.
Perfumada em alfazema, pele bronzeada e morena
no sol quente do cerrado.

Como árdea campesina seu passo é leve.
Esbelta, ave rara em descampado,
sugeri-me uma açucena, ou uma rosa morena
no sol quente do cerrado.

És como flor de um silvestre ramalhete
floresceste em meio ao campo não plantado.
Suave como o som da flauta avena
é a sua pele morena no sol quente do cerrado.
 
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