terça-feira, 5 de agosto de 2008

Náufragos

Quantos sonhos destruidos...
Realizá-los? Quem dera!
Trabalha, poupa e aplica,
nada que se faz prospera.

Somos náufragos em terra firme
num mar de lama e miséria.

Como nau em mar revolto
sem farol para direção,
a elite no convés e o povo no porão.

Somos náufragos em terra firme
num mar de corrupção.

O povo é como manada,
sem pascigo pouco come.
Negros e brancos são escravos
da miséria que os consomem.

São náufragos em terra firme
num mar de pobreza e fome.

Pobre do povo que não luta
por excesso de paciência,
acredita ns discursos da elite avarenta.

São náufragos em terra firme
num mar de esperança e crença.

As estações

O inverno é um velho que anda de casaco, gorro e cachecol.
O outono é forte e de meia idade, vende frutas numa carrocinha.
O verão é um jovem irresponsável, só pensa em brincadeiras.
A primavera? Não a conheço, dizem que é uma jovem lindíssima.

Semana

Eu queria ser como a quarta-feira.
Sabe aquela coisa de ficar bem longe dos extremos?
Eu não seria como a velha e péssima segunda
que traz toda a ressaca do domingo.
E nem eufórico e inconsequente como a sexta-feira.
Eu passaria desapercebido entre a terça e a quinta,
e as usaria como escudo protetor das bebedeiras do sábado.
Mesmo sabendo de antemão que um dia serei quarta-feira de cinzas,
restaria-me então o consolo de que nunca seria carnaval.

Mula-sem-cabeça

No interior de São Paulo,
quando é noite de minguante,
a escuridão toma conta
do cerrado verdejante.
As águas claras refletem
as estrelas cintilantes.
Parece um paraíso
este lugar que eu vivo,
natural e aconchegante.

Quando a ventania sopra
nas copas dos favais,
o ranger dos galhos das árvores
assusta os animais.
O ouriço corre sozinho,
vai roçando seus espinhos
nos espinhos dos ananases.
Dentre as moitas de taboca,
o tatu procura a toca
para se esconder dos temporais.

Nas horas mortas da noite
tudo é desassossego:
corre a mula-sem-cabeça
com seus olhos acesos.
O Saci e o Boi-tatá,
gritam para espantar
uma revoada de morcegos.
E alheio atudo aquilo,
o caipira dorme tranquilo
tendo um rosário entre os dedos.

Os missivistas

Por onde andam os missivistas?
Já não escrevem mais cartas:
Tanto de tanto de mil novecentos e tanto, saudações...
Seguiam-se linhas fartas!
Por onde andam as telefonistas?
Para onde irão, um dia, os internautas?

Cerrado serrado

Cadê o cerrado do interior do meu Estado?
Já foi serrado, já foi serrado.

O córrego aonde o tamanduá
ia beber e se espojar,
com seu focinho alongado.
E os ipês quando floridos eram três cores,
enchiam o sertão de flores
deixando o ar perfumado,
já foi serrado... já foi serrado.

Cadê o cerrado do interior do meu Estado?
Já foi cerrado, já foi cerrado.

Tatus, raposas, emas, lobos em matilhas,
caíram nesta armadilha,
foram dizimados.
Cadê o faval da fava de sucupira?
Até eu, bicho caipira,
estou vivendo assustado.
A caneleira, o óleo de capaíba,
o angico, a pindaíba? Já foi serrado.

Cadê o o cerrado do interior do meu Estado?
Já foi serrado, já foi cerrado.

Proversos

I

E Deus criou o céu, a terra e os mares,
os bares e todos os males.


II

Pedro, tu és pedra e sobre ti edificarei minha Igreja,
e ao redor enormes favelas.


III

Vinde a mim as criancinhas
enquanto o semáforo estiver fechado.


IV

E todos entraram no Reino de Deus:
o rico montando o camelo
e o pobre, caminhando, carregava a agulha.


V

O menino puxou o muro.
O guarda pichou o gatilho.
O sangue pintou o asfalto.


VI

Filosofia de ourives:
Vão-se os dedos, ficam os anéis.

Da claustrofobia

Sei que falta muito tempo
para esse fato acontecer,
mas quero deixar um recado
para o dia em que eu morrer.
Quem for me visitar,
chegue perto do caixão,
se quiser pode chorar
ou fazer uma oração.
Faça tudo com paciência,
de acordo com sua crença,
para aliviar o coração.

Enquanto as pessoas rezam,
gestos calmos, caras sérias,
algo vai se processando:
micróbios e bactérias
aos poucos me devorando.

Terá choro, reza e riso
pra disfarçar as tristezas,
enquanto em cima da mesa
eu aguardo sussegado,
esperando a gentileza
dos presentes convidados
para que me dêem uma mão,
peguem a alça do caixão
para que eu possa ser enterrado.

Aqui fica meu apelo
aos que forem em meu velório:
não preciso de homenagem,
discursos ou falatórios.
Examinem se eu morri
ou é apenas um imbróglio,
pois sofro calustrofobia
que é um problema especial.
Respeitem esse meu pedido,
pois se me enterram vivo
com certeza eu paso mal.

Como espinho

A saudade é como espinho
no tronco da laranjeira:
cresce devagarinho,
porém dura a vida inteira.

Serrinha da Jacutinga

Dos olhos garços das onças
entre os macegais fechados,
dos ventos soprando em uivos
como lobos desgarrados,
na noite o farto rocio
fez brotar os rios
na garganta do cerrado.

Os rios empalidecidos,
que cortam campos desnudos,
banham terras douradas
tentando dar vida a tudo.
São águas caramunhadas
por veredas serpenteadas
vindas da Serra de Agudos.

Onde o sol chega primeiro,
sobre tijucos e barrocas,
os rios nascem ali
das profundezas das rochas.
Criam arroios e banhados,
São flores que desabrocham
pra dar vida ao cerrado.

Nos espigões da redondeza
luzia o sol da manhã.
Águas de cristal pureza
jorravam em minas irmãs:
Bauru, Batalha e Lençóis,
e o Turvo do Espírito Santo
são rios que passam por nós
dando-nos vida e encanto.

Curarina

Silenciaram as siriemas,
as emas e muito mais.
E meus sonhos de menino
viraram pinus e canaviais.

As nascentes do rio Turvo
e outros mananciais.
E meus sonhos de menino
viraram pinus e canaviais.

Corujas e curiangos
e lagoas naturais.
E meus sonhos de menino
viraram pinus e canaviais.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Canaviais

          Eu nasci nesse campo seco do cerradão de Bauru, já no segundo planalto paulista, longe das ondulações geográficas que nos separam do oceano. Aqui o vento chega sem umidade e sem maresia, cabe às lágrimas umedecer os meus olhos e, ao amargor das minhas lembranças, corroer minha alma. Ainda criança, tive a mamadeira adoçada com a fuligem dos canaviais. Meu principal brinquedo foi o facão afiado que, além da cana, decepava também minha infância e feria de morte meu futuro.

           Eu conhecia como ninguém a fauna e a flora do cerrado. Cresci à sombra dos ipês, dos angicos e das copaíbas até me sentir grande diante dos arbustos menores como as gabirobas, os cajus do campo e o marolo rasteiro. Sabia o nome popular de cada árvore, conhecia o sabor das folhas, sabia identificar os animais pelas pegadas que deixavam nas trilhas claras do areião do cerrado, os piados das aves e seus bater asas me eram familiar.

           Como se fosse um cortejo fúnebre assisti, resignado, as mudanças de tudo que me rodeava. Contei uma a uma cada arvore que foi brutalmente empurrada para as caieiras, onde eram queimadas como corpos inocentes em cerimônia de cremação coletiva. Como criança medrosa contei baixinho até não saber mais. Foram centenas de espécies de animais e aves, plantas que curavam e outras que davam frutos.

          Sentindo-me impotente diante da insanidade dos “bem sucedidos” virei as costas à tudo e busquei cuidar da minha sobrevivência. Hoje sou como ave que sobrevoa um descampado em busca de uma árvore para pousar. Sou um homem aprisionado na vastidão da cidade grande. Sou um animal assustado rodeado de canaviais.
 
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